Estado da Arte
O Aleijadinho
“O novo Praxíteles … que honra igualmente a arquitetura e a escultura. … Superior a tudo e singular nas esculturas de pedra … é Antônio Francisco … Tanta preciosidade se acha depositada em um corpo enfermo que precisa ser conduzido a qualquer parte e atarem-se-lhe os ferros para poder obrar”. Afora uns parcos registros cartoriais, este trecho de um memorando de 1790 sobre a capitania das Minas Gerais é praticamente a única notícia conhecida sobre o Aleijadinho enquanto vivo. Entre os extremos de uma obra gloriosa e uma vida miserável, a obscuridade é tamanha que a partir dela já se inferiu e se questionou de tudo: a autoria de suas obras, seu valor, as motivações do artista, sua doença e até sua existência.
Já sua primeira biografia, escrita 44 anos após sua morte, é para muitos suspeita de magnificar em chave romântica o herói artista; de dramatizar o gênio marginalizado pela sua cor, sua classe, sua doença; o monstro sublime que triunfa sobre o sofrimento com um esforço criativo sobre-humano. Ironicamente, o biógrafo, Rodrigo Bretas, já alertava para as “exagerações que se vão sucedendo e acumulando” sobre os indivíduos admiráveis até se compor “uma entidade ideal”. Os modernistas o reconfiguraram como um ícone do sincretismo nacional que deglutiu os cânones europeus e o imaginário africano e indígena para dar à luz uma obra original. O entusiasmo encomiástico de Mario de Andrade chega a proporções épicas: “O artista vagou pelo mundo. Reinventou o mundo. O Aleijadinho lembra tudo! Evoca os primitivos italianos, esboça o Renascimento, toca o Gótico, às vezes é quase francês, quase sempre muito germânico, é espanhol em seu realismo místico”. Mas é um caso exemplar das oscilações interpretativas sobre sua obra que enquanto Mario enxergava nas desproporções de suas estátuas a antecipação visionária do expressionismo, Oswald de Andrade só via “ignorância crassa” sobre anatomia, a mesma que acusaram tantos estrangeiros desinteressados dos cultos nacionais. Por outro lado, para um escritor com a sensibilidade e erudição do mexicano Carlos Fuentes, o mulato foi o maior “poeta” da América colonial; Lezama Lima o considerava a “culminação do barroco” na América; e para o crítico, historiador da arte e diretor de desenho e pintura do Louvre, Germain Bazin, este “Michelangelo brasileiro” foi “o último grande criador de imagens cristãs”.
A controvérsia entre os construtores do mito e seus demolidores promete não ter fim. Mas embora estes últimos estejam escorados em sólidas inconsistências sobre a vida e a obra do Aleijadinho, não seriam as próprias torrentes de tinta e saliva consumidas nesta batalha em torno a elas o maior testemunho da sua potência plástica e indelével?
Convidados
André Tavares: professor de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo
Angela Brandão: professora de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo
Mozart Bonazzi: professor da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Referências
* O Aleijadinho: sua vida, sua obra, seu gênio de Fernando Jorge.
* O Aleijadinho e a escultura barroca no Brasil de Germain Bazin.
* Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho de Rodrigo Jose Ferreira Bretas.
* O Aleijadinho e Alvares de Azevedo de Mario de Andrade.
* Aleijadinho: passos e profetas e O Santuário de Congonhas e a arte de Aleijadinho de Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira.
* Aleijadinho e o aeroplano: o paraíso barroco e a construção do herói colonial de Guiomar de Grammont.
* Iniciação ao barroco mineiro de Affonso Avila.
* Congonhas Bíblia de cedro e de pedra de Marcos Barbosa.