Estado da Arte
O ‘Romanceiro da Inconfidência’ de Cecília Meireles
Segundo Aristoteles, a poesia difere da história por falar não das coisas como aconteceram, mas como poderiam acontecer, e é “mais filosófica” por exprimir realidades universais e não particulares. 2.400 anos depois, uma poetisa meditava sobre a distância entre o registro histórico e a invenção poética:
O primeiro fixa determinadas verdades que servem à explicação dos fatos; a segunda anima essas verdades de uma força emocional que não apenas comunica fatos, mas obriga o leitor a participar intensamente deles, arrastando-o no seu mecanismo de símbolos, com as mais inesperadas repercussões.
Palavras ditas em Ouro Preto, onde anos antes tivera uma epifania durante a Semana Santa:
Todo o presente emudeceu, como plateia humilde, e os antigos atores tomaram suas posições no palco. ... Os homens de outrora misturaram-se às figuras eternas dos andores; … na procissão dos vivos caminhava uma procissão de fantasmas.
Eram os soldados, padres, poetas da rebelião esmagada pela Coroa portuguesa em 1789 e resgatada cem anos depois pela propaganda republicana, que consagrou em Tiradentes o herói cívico-religioso da mitologia nacional.
O Romanceiro da Inconfidência é formado por 85 romances entremeados por falas, cenários e uma serenata, com todo tipo de variação métrica e rítmica.
Há poemas em que a rima aflora, em intervalos regulares, outros em que ela aparece, desaparece e reaparece, apenas quando sua presença é necessária.
Com a mesma liberdade, os planos épico, dramático e lírico se justapõem, se entrelaçam e se diluem numa atmosfera de idílios arcádicos onde fermentam ideias libertárias e jorra a ambição torrencial do ouro, que
Do seu calmo esconderijo, ... vem, dócil e ingênuo;torna-se pó, folha, barra, prestígio, poder, engenho... É tão claro! – e turva tudo: honra, amor e pensamento
diz Cecília, e conclui:
Por ódio, cobiça, inveja, vai sendo o inferno traçado.
Tudo se passa entre duas interrogações fatais:
Que é feito de ti, remoto Verbo Encarnado?
e
Que é feito de vós, ó sombras que o tempo leva de rastos?
Suspensa entre uma e outra, a fábula da Vila Rica se degrada em Ouro Preto, revelando uma epopeia de heróis quiméricos, suicidas, traidores; uma apoteose de degredados, encarcerados e esquartejados; uma saga abortada, que desagua no desterro interior das mulheres do Romanceiro, as Isabéis, as Eliodoras, a donzela assassinada, o fantasma de Marília, Maria a Rainha Louca – vozes que se misturam ao cortejo barroco de tropeiros, concubinas, escravos, religiosas, bêbados, mascates para chorar
... esse mistério,esse esquema sobre-humano, a força, o jogo, o acidente da indizível conjunção que ordena vidas e mundos em polos inexoráveis de ruína e exaltação.
No derradeiro verso, sob os sonhos de liberdade do Ciclo do Ouro reduzidos a pó, arde como brasa a interrogação de Cecília:
Quais os que tombam, em crimes exaustos, quais os que sobem, purificados?
CONVIDADOS
Ana Maria Domingues de Oliveira: professora de letras da Universidade Estadual Paulista e autora de Estudo crítico da bibliografia sobre Cecília Meireles;
Leila Gouvêa: doutora em literatura pela Universidade de São Paulo e autora de Pensamento e “Lirismo Puro” na Poesia de Cecília Meireles e Cecília em Portugal;
Norma Goldstein: professora de língua portuguesa da Universidade de São Paulo e autora do Roteiro de Leitura do ‘Romanceiro da Inc...