Po(D)ema | Mundo Podcast

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Po(D)ema #101 - Mythopoeia

December 04, 2014

  • Texto: Mythopoeia
  • Autor: J.R.R. Tolkien
  • Interpretação: Victor Snaga (@OrcSnaga)


  • Música: Gollum’s Song – Howard Shore
  • Duração: 6min19s

Arte da vitrine: Rodrigo Sena



Tolkien - Mythopoeia

Tolkien



Mythopoeia

Você vê árvores, e as chama assim,

(pois é o que são e o seu crescer, enfim);

palmilha a terra e com solene passo

pisa um dos globos menores do Espaço:

uma estrela é matéria numa bola

que em matemático trajeto rola

regimentado, gélido, Vazio,

de átomos morrendo a sangue frio.

Por uma Vontade, à qual nos dobramos

mas que nós só de longe captamos,

grandes processos o Tempo completa

de início escuro a incerta meta;

e em página reescrita sem pista,

de letra e margem vária já revista,

eis multidão de formas infinitas,

negras, belas, frágeis ou esquisitas,

cada qual diversa, mas num só rol

de germe, inseto, homem, pedra e sol.

Deus fez pétreas rochas, arbóreas árvores,

terra térrea, estelares fulgores,

e os homens humanos, que andam no chão

e a quem luz e som causam comichão.

O remexer do mar, vento nos galhos,

relva, vacas mugindo nos atalhos,

trovão e raio, aves a cantar,

limo escorrendo a viver e murchar,

cada qual é registrado e impresso

nas contorções do cérebro em recesso.

Mas “árvores†só o são se nomeadas –

e só o foram quando captadas

por quem abriu o hálito da fala,

eco do mundo numa escura sala,

mas nem registro nem fotografia,

sendo risada, juízo e profecia,

resposta dos que então sentiram dentro

profundo movimento cujo centro

é o existir de planta, fera, estrela:

cativos que grade serram sem vê-la,

cavando o sabido da experiência

abrindo o espírito sem consciência.

Grande poder de si mesmos criaram,

e atrás de si os elfos contemplaram

que labutavam nas forjas da mente

luz e treva entretecendo em semente.

Não vê estrelas quem não as vê primeiro

qual prata viva explodindo em chuveiro

chama florida sob canção antiga

cujo eco mesmo de longa cantiga

o perseguiu. Não há um firmamento,

só vazio, se não tenda, paramento

por elfos desenhado; não há terra,

se não ventre de mãe que a vida encerra.

Mentiras não compõem o peito humano

que do único Sábio tira o seu plano,

e o recorda. Inda que alienado,

algo não se perdeu nem foi mudado.

Des-graçado está, mas não destronado,

trapos da nobreza em que foi trajado,

domínio do mundo por criação:

O deus Artefato não é seu quinhão,

homem, sub-criador, luz refratada

em quem matiz branca é despedaçada

para muitos tons, e recombinada

forma viva mente a mente passada.

Se todas as cavas do mundo enchemos

com elfos e duendes, se fizemos

deuses com casas de treva e de luz,

se plantamos dragões, a nós conduz

um direito. E não foi revogado.

Criamos tal como fomos criados.

Sim! Sonhos tecemos para enganar

os corações e o Fato derrotar!

De onde o desejo e o poder pra sonhar,

e as coisas belas ou feias julgar?

Querer não é inútil, nem calor

procuramos em vão – pois dor é dor,

não de ser desejada, mas perversa;

ou ceder a uma vontade adversa

ou resistir seria igual. E o Mal,

desse apenas isto é certo: É o Mal.

Bendito o tímido que o mal odeia,

treme na sombra, e o portão cerceia;

que não quer trégua, e em seu solar,

mesmo pequeno, num velho tear

tece pano dourado à luz do dia

sonhado por quem na Sombra porfia.

Benditos os que de Noé descendem

e com suas arcas frágeis o mar fendem,

sob ventos contrários buscando sé,

rumor de um porto indicado por fé.

Benditos os que em rima fazem lenda

ao tempo não-gravado dando emenda.

Não foram eles que a Noite esqueceram,

ou deleite organizado teceram,

ilhas de lótus, um céu financeiro,

perdendo a alma em beijo feiticeiro

(e falso, aliás, pré-fabricado,

falaz sedução do já-deturpado).

Tais ilhas vêem ao longe, e outras mais belas,

e os que os ouvem podem girar as velas.

Viram a Morte e a derrota final,

sem em desespero fugir do mal,

mas à vitória viraram a lira,

seus corações qual legendária pira,

iluminando o Agora e o Que Tem Sido

com brilho de sóis por ninguém vivido.

Quisera com os menestréis cantar

com minha corda o não-visto tocar.

Quisera navegar com os marinheiros

sobre tábuas em montes altaneiros

e viajar numa vaga demanda,

que alguns ao fabuloso Oeste manda.

Quisera entre os tolos ser sitiado,

que em remoto forte, de ouro guardado,

impuro e escasso, recriam leais

imagem tênue de pendões reais,

ou em bandeiras tecem o brasão

fulgurante de não-visto varão.

Não seguirei seus símios progressivos,

eretos e sapientes. Caem vivos

nesse abismo ao qual seu progresso tende –

se por Deus o progresso um dia se emende

e não sem cessar revolva o batido

curso sem fruto com outro apelido.

Não trilharei sua rota sem vacilo,

que a isto e aquilo chama isto e aquilo,

mundo imutável onde não tem parte

o criador com sua pequena arte.

Eu não me curvo à Coroa de Ferro,

nem meu cetrozinho dourado enterro.


No Paraíso pode o olho vagar

do Dia imorredouro contemplar

a ver o que ele ilumina, e nova

Verdade ter com isso como prova.

Olhando a Terra Bendita verá

que tudo é como é, e livre será:

A Salvação não muda, nem destrói,

jardim, criança ou brinquedo corrói.

Mal não verá, pois este está imerso

não no que Deus fez, mas no olhar perverso,

não na fonte, mas em escolha errada,

e não no som, mas na voz quebrantada.

No Paraíso não estão mais confusos;

criam novo, sem mentira nos usos.

Criarão, é certo, não estando mortos,

poetas terão chamas como votos,

e harpas que sem falta tocarão:

do Todo cada um terá quinhão.